Codependência afetiva: Arte de voltar duas vezes ao mesmo inferno – parte 2

Como dissemos na parte 1 do nosso artigo, no processo da adição afetiva existe o “vínculo compensatório”, que se dá na maioria das vezes, através do consumismo excessivo, da cultura doentia ao corpo, ou compulsão à comida. Há o desenvolvimento da síndrome da eterna juventude e às vezes, esses indivíduos deixam emergir um narcisismo patológico, ou uma síndrome do perfeccionismo.

No caso da codependência afetiva, existe o “vínculo compensatório”, porém não existe a possibilidade de fazer a substituição do objeto de desejo (no caso, viver uma nova relação e deixar ser amada). Não existe o deslocamento, ou seja, é necessário viver novamente um processo relacional afetivo, para que se possa aferir se houve ou não, uma nova aprendizagem e uma evolução qualitativa, no tocante ao amadurecimento emocional.

Ao possibilitar-se viver um novo processo relacional afetivo, corre-se o risco de desenvolver novamente, uma codependência afetiva. Isso significa entrar no “inferno em chamas”, a fim de verificar se as feridas psíquicas e emocionas estão realmente cicatrizadas.

Sartre dizia que “o homem é condenado a ser livre”. Eu acrescentaria “o ser humano é um ser condenado a viver as relações”.

Então, como “ser livre” e “viver as relações” na dependência de ser amado e aceito pelo outro?

Imagino que para ficar imune à “codependência afetiva” é preciso viver as relações afetivas nas mais diversas complexidades. A arte de viver as relações em sua intensidade e manter a individualidade, é o que dá sentido à nossa vida.

“Sísifo, personagem da mitologia grega, que era o ser aprisionado pelo diabo e acorrentado dentro das entranhas do inferno, consegue escapar”. Porém o pavor psíquico torna-se enorme, e ele imagina como pregar uma peça no diabo.

Cria para o próprio cotidiano a seguinte missão:

passar o resto da sua vida, empurrando uma pedra, de aproximadamente 100 quilos, até o cume da montanha, então deixa a pedra rolar, para baixo e começa novamente a empurrar a pedra para o alto da montanha e assim sucessivamente e ininterruptamente.

Quando questionado explicou: “quando o diabo me olhar, vai imaginar que esta é a minha punição, então vai me deixar em paz.”

Ah! Então é assim? Nós fugimos do diabo, porém não conseguimos fugir do nosso próprio inferno particular.

Assim são as relações de codependência, querendo depender do outro, nos tornamos codependentes. Afinal, não encarar o diabo, é o mesmo que dizer que ele não está dentro do seu psiquismo.

Sebastião Souza

Codependência afetiva: Arte de voltar duas vezes ao mesmo inferno – parte 1

É bem possível que cada um de nós, em nosso inferno particular, deva possuir particularidades e singularidades próprias.

No entanto, ao entrar em contato com a codependência afetiva, tenho observado que tal fenômeno faz emergir no codependente, angústias catastróficas e ansiedades dilacerantes.

Análogas às “chamas ardentes do inferno, acrescidas do seu cheiro de enxofre”. Chamas essas, que possivelmente, foram construídas e vivenciadas pela pessoa durante toda sua vida, a experiência é o fruto de um desejo incontrolável de ser amada e aceita pelo “outro”.

Diabo para que? Ele não é necessário! Quando a alma dói, nosso inferno particular cria quantos diabinhos forem necessários.

Afinal, “o inferno sem diabo, não é inferno”! Impossível pensar em um inferno sem diabo! Corre-se o risco de descobrir que projetamos no “outro” os 100% de lixos emocionais nossos não elaborados.

O coerente seria assumir os 50% dos nossos lixos emocionais, ainda não reciclados, e deixar os outros 50% , para que o “outro” dê conta. Afinal, no acerto de contas, ninguém constrói um  inferno sozinho.

Minha experiência do consultório tem mostrado que a dependência afetiva apresenta-se como um dos mais complexos distúrbios emocionais a serem tratados, felizmente com algum sucesso na terapia.

Esse “vício de amar” é um tipo de vício que traz no seu cerne as memórias seletivas dos momentos afetivos aparentemente “bons”, descartando, por outro lado, os momentos de crise.  Os momentos afetivos aparentemente “bons” trazem as lembranças do cheiro, da “química de pele”, a música, as viagens, o entretenimento. Ao mesmo tempo, minimizam as crises, angústias, ansiedades, agressões verbais, e por vezes, mesmo as agressões físicas.

Nas dinâmicas em que os processos de adição se desenvolvem como o álcool e outras drogas (maconha, cocaína, ectasy, heroína), os tratamentos terapêuticos caracterizados por englobar as psicoterapias, o emprego dos fármacos e às vezes internações, são apontados como as melhores opções, visando à reestruturação e restauração do psíquico do indivíduo.

O elaborar e o ressignificar do aparato mental da adicta parte da premissa que é necessário oferecer ao indivíduo novas representações mentais que possam mudar sua forma de ver o mundo, ao mesmo tempo em que se possibilita o emergir de novos significados alternativos.

Numa tentativa de livrar-se da compulsão às drogas, o dependente substitui o seu objeto de desejo (as drogas), dedicando-se, na maioria das vezes, à religião, profissão, aos estudos, ou a um projeto de vida até então, inexistente. Esse deslocamento é conhecido por “vínculo compensatório”, que substitui o objeto de desejo, no caso a droga.

Na segunda parte de nosso artigo iremos nos aprofundar neste assunto. Não percam!

O luxo do lixo

Em recentes estudos com amigos da universidade, ficamos encarregados de estudar alguns artigos científicos sobre o processo do lixo e de sua coleta, na cidade de São Paulo, em função de uma pesquisa que será realizada sobre catadores de papelão, mais especificamente  na região do Itaquera.

Qual não foi a nossa surpresa, ao nos darmos conta que ao sentarmos em volta de uma grande  mesa, começamos a falar do nosso lixo pessoal;  entendendo aqui a palavra lixo como uma metáfora das frustrações, sofrimentos, misérias emocionais e materiais vividas por aquele grupo nas suas respectivas infâncias e adolescências,  o que possivelmente estava nos abrindo possibilidades de ressignificar os nossos lixos internos e transformá-los em construções luxuosas de novas formas de nos relacionarmos, como seres humanos enriquecidos de experiências difíceis, porém enobrecedoras no sentido de que o verdadeiro ser inteligente é aquele que aprende com a experiência.

A arte de transformar lixo em luxo é ter a capacidade de  transcender aos sofrimentos e dar novos sentidos de competência, ou seja, sair da situação de sobrevivência na tentativa de encontrar a qualidade do viver.

Era unânime entre os componentes da mesa as semelhanças entre as várias matrizes familiares ali presentes. Todos tínhamos muito medo do “fantasma da miséria”, podendo ser ele de ordem emocional ou material, parece que o mesmo ficava impregnado para sempre nas nossas histórias de vida transgeracionais.

Começamos a perceber que  como seres humanos não tínhamos que ter medo do nosso passado, e que poderíamos aprender com ele, e era isso que estávamos fazendo através das releituras de nossas vidas, e com muito orgulho de podermos expor nossas “fragilidades” em grupo e nos sentirmos acolhidos e no aconchego de uma solidariedade mútua até então não vivida por aquela equipe.

Enfim, uma teia de histórias familiares que poderíamos pensar que era comum a muitas pessoas, porém para nós era de grande serventia, pois nos mostrava mais uma vez que antes de ir a rua pesquisar os catadores de papelão (lixo) era preciso conhecer um pouco do lixo interno de cada um de nós.

Afinal, em cada um daqueles catadores de papelão a serem pesquisados, existia uma alma humana que por determinada fatalidade teve que mesclar o seu lixo humano com o lixo da rua. E quem sabe um dia poderá ressignificar sua história pessoal e  sentir-se digno de sentar à mesa e orgulhar-se de ter conseguido sair da condição sub-humana em que vivia.

Como dizia o grande compositor “viver, e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor, e será, mas isto não impede que eu repita: é bonita, é bonita, e é bonita.” (Gonzaguinha)

Um abraço a todos.

Angela Elisete Caropreso Herrera