O Trem Fantasma

Conversava com algumas amigas, que relatavam os processos repetitivos que todos nós vivemos ao longo da vida, através de nossas escolhas amorosas, das amizades, das parcerias de profissão etc. Esses processos podem ser vivenciados nos conflitos conjugais, com os filhos e principalmente com nossos pais, dentro do nosso lar.

Groisman (2000) cita os fantasmas familiares que vivem sendo representados transgeracionalmente em nosso convívio familiar, e que aparecem através dos rituais, mitos, crenças etc. Eu defino esses processos repetitivos vividos por todos nós, a partir da metáfora do “trem fantasma”, onde ao nascermos embarcamos em um dos seus vagões, repletos de personagens fantasmas que representam as várias gerações.

O bebê não tem escolha, queira ou não terá que conviver com esses personagens fantasmagóricos para o resto da vida. Porque fantasmas? O recém-nascido nem bem chegou ao mundo e fazem festas barulhentas, soltam fogos, fumam charutos, tomam porre, o que acham que um bebê entende disso, parece mais um baile de carnaval.

Na convivência do nosso vagão familiar, cheio de fantasmas, cabe a nós identificá-los tentando conviver, da melhor maneira possível, com eles. Lembre-se: não tem como matar fantasma, ele já está morto.

Ilustrarei com dois exemplos.

Um casamento é desfeito após  20 anos de desastrosas convivências  dos cônjuges com suas histórias familiares, repletas de fantasmas das mais variadas espécies, onde o marido sai de casa, pois a esposa alega maus tratos, desqualificação e desafeto. Ela imagina que seu inferno particular acabou, e escolhe um novo parceiro, passam seis meses, e ela vê as semelhanças entre  ex-marido e o novo companheiro, o fantasma sofreu uma metamorfose.

Como é possível? Porque isso acontece?

Temos uma matriz familiar e, a partir dela, fazemos nossas escolhas, essa matriz sofre pequenas variações em grau e intensidade, ao longo da nossa existência, e vai se  transformando ao longo de nossa vida.

Outro exemplo: uma mulher se separa após 15 anos de casamento, pois o marido era controlador, ciumento e agressivo. Quando o marido sai de casa, ela tem a ilusão que seus problemas acabaram, mero engano. Quando o diabo (fantasma) vai embora, ele nomeia seus representantes, agora começa sua peregrinação. Ela tinha um fantasma para cuidar, agora ela tem vários, os filhos, os pais,  os irmãos para controlá-la e ter ciúmes e dizer o que ela deve fazer, pois na opinião deles, ela não está preparada para enfrentar o  mundo aqui fora, e os amigos perversos sempre dão conselhos  (de bons conselheiros o inferno, está cheio), dizem que agora você vai ver o que é a vida de mulher separada; haja fantasma ou não!

Uma vez embarcado no “trem fantasma” não tem como exorcizar esses fantasmas, pois os mesmos quando aparecem no mundo externo  são na verdade representações do aparelho psíquico familiar, ou seja, nosso mundo interno. Para nos livrarmos dos mesmos, teríamos  que aniquilar nosso aparelho psíquico, com isso também viraríamos fantasmas, tal qual a história da lenda do fantasma “mula sem cabeça”, lembra!

Afinal parece que os fantasmas estão em todos os lugares, no amor, no trabalho, na faculdade e principalmente nas relações familiares.

O “trem fantasma” vai continuar a viagem com uma grande festa à fantasia, é claro. Você vai à festa ou você prefere saltar?

Sebastião Souza
Psicoterapeuta de casais e de famílias

Doenças psicossomáticas

Quando pensamos na relação conjugal, a partir do paradigma sistêmico, sempre levamos em consideração que a formação do casal nunca é composta por dois elementos e, sim, três, ou seja, a individualidade de cada cônjuge mais a relação que os dois estabelecem.

Essa é uma afirmação de difícil compreensão para os casais que chegam ao consultório, procurando ajuda. A maioria já traz a solução, principalmente quando a questão refere-se ao adultério, em que as sentenças estão definidas pelo casal ou por um dos cônjuges, ou seja, o culpado é sempre o autor ou a autora da traição e a vítima é o (a) parceiro (a).

Esta é uma forma simplista de ver a vida, com base em um pensamento linear, que busca identificar um nexo-causal, comumente relacionando à questão da causa e efeito, como se a convivência a dois pudesse ser considerada algo de fácil acesso.

Não tenho a pretensão de fazer aqui a apologia sobre atos irresponsáveis na vida a dois, sejam eles adultério, consumismo ou posturas narcisistas de determinados homens ou mulheres que se imaginam deuses ou deusas.

Pretendo, como conhecedor da área de casais e famílias, colaborar à ampliação da percepção de certos fenômenos que envolvem os cônjuges que, muitas vezes, nem se dão conta porque estão focados em interpretar fatos de uma forma reducionista.

O conceito que ora divido com você, leitor, é referendado pela ciência biológica que, por sua vez, o emprestou para a ciência social. Como tal, subsidia os estudos de relações familiares, isso é, o cotidiano de casais e famílias. Por exemplo, na combinação química de dois elementos é possível o surgimento de um terceiro, totalmente diferente, fenômeno denominado propriedade emergente.

Tomemos como base a composição da água: oxigênio (O) + 2 átomos de hidrogênio (H) = H2O.

O oxigênio e o hidrogênio são gases, mas, na combinação química de ambos, o resultado é um líquido.

De modo similar é a composição de um casal, formado por personalidades diferentes que, quando em interação, faz emergir uma mente grupal totalmente diferente àquela atribuída a cada um, na sua individualidade. Daí as incertezas da relação conjugal, uma vez que o produto no momento da combinação não pode ser predito.

Considerando a complexidade sistêmica da relação conjugal, que passa por várias crises, não podemos deixar de considerar a história familiar e pessoal de cada parceiro, vivida em suas respectivas famílias de origens. Por isso que muitos dizem: “Não me casei com aquele homem ou aquela mulher e, sim, com a sua família”. Ou seja, a família de origem tem muita influência na vida do casal.

As crises conjugais fazem parte do processo evolutivo de cada cônjuge que, se trabalhadas, podem trazer um novo significado, culminando com o amadurecimento emocional de ambos. Nesse processo, há, portanto, espaço para o crescimento do casal, visto que ele representa uma escolha privilegiada de intercâmbio relacional.

Os momentos críticos da vida a dois podem ser gerados por diversos impasses, dentre eles a falta de diálogo e reflexão sobre a convivência do casal, certas dificuldades no âmbito sexual, conflitos de opinião ou de interesse, além de diferenças culturais. Dessa maneira, o sistema conjugal depara-se com a falta de alternativas para sair do impasse e, como consequência, doenças psicossomáticas podem ser desencadeadas: úlcera, alergia, hipertensão arterial, obesidade decorrente de ansiedade, anorexia nervosa, bulimia, dependência química e fobias.

Da mesma forma, o nível de liberdade nas escolhas é diretamente proporcional ao nível de consciência alcançada por cada parceiro da relação, no momento do casamento, que, por conseguinte, sofre influência direta da fase de transição de cada cônjuge experimentada em sua família de origem, ao realizar mais essa etapa do ciclo familiar vital.

Os fatores desencadeantes das crises conjugais, como adultério, crise financeira interferente na relação, dependência química e jogos de azar, surgem, na maioria das vezes, como um sinalizador da existência de conflitos subjacentes ainda não resolvidos. A fim de solucioná-los, requer-se o auxílio de um profissional especializado em terapia familiar e de casal.

Aprendemos a ampliar a nossa percepção de mundo ao mesmo tempo em que entendemos melhor as nossas relações familiares e conjugais. Isso não significa isentar cada um de sua responsabilidade, mas, sim, ter consciência de que o outro faz parte do nosso processo evolutivo interrelacional. Esse olhar, por sua vez, torna as relações conjugais mais humanas e solidárias, uma vez que não se tem como negar a responsabilidade dos 50% de cada um no processo de escolha do(a) parceiro(a).

Sebastião Souza
Psicoterapeuta de casais e de famílias

Um filme sem vilão não tem razão de ser

De modo geral, pessoas de temperamento mutável, inquietas, inconstantes e imprevisíveis incomodam bastante e são pouco aceitas pelos pares ou grupos.

Temos o hábito de estereotipar e imaginar padrões e regularidades comportamentais para aqueles que convivem conosco. Quem deseja ser aceito e acolhido pelos seus tenta corresponder aos estereótipos, caso contrário será visto como um elemento estranho ou estorvo.

Pensemos em uma criança que, desde cedo, não aceita as regras impostas pelos pais. Ou, ainda, a esposa que não sabe conviver com o grupo de amigos do marido, por abusarem do álcool ou terem o hábito de contar piadas machistas e preconceituosas. Essa criança e essa esposa, com o passar do tempo, poderão se tornar personas non gratas em determinados ambientes. Por quê? Porque é difícil ser “vilão” em terra onde todo mundo quer ser o “mocinho”.

Ensinaram – e aprendemos muito bem – que a vida, em si, tem uma regularidade, seja na família, no casamento, nas vidas pessoal e profissional. Mero engodo. Passamos a interagir com o mundo, sempre com a sensação de que algo está em desordem. Trabalhamos para atingir uma segurança futura e evitar episódios e acontecimentos que gerem inseguranças e imprevistos.

Sabe aquele ditado “mais vale um passarinho na mão do que dois voando”?  Assim é no trabalho. Algumas vezes, vivenciamos uma servidão voluntária, deixando de nos manifestar, para bancarmos o “politicamente correto”. Raras são as pessoas que internalizam que não dá para viver sempre como os “mocinhos” do filme.

Nas famílias, nos casamentos, na vida interpessoal e profissional, a tentativa de evitar conflitos, contornar a situações difíceis, não querer entrar em choque com ideias com as quais não concorda, são indicadores de autoestima baixa, falta de assertividade e um instinto de preservação pouco manifesto. O medo de enfrentar os conflitos, de correr riscos, para não ficar no papel do vilão, geralmente se manifesta em pessoas que, por viverem experiências traumáticas no passado, em suas famílias de origens (infância ou adolescência), em casamentos anteriores ou na vida pessoal – vivência de preconceitos, bullying –, ou até mesmo em situações de desemprego, usam esse mecanismo como forma de compensação.

Há um pensamento mágico nessa defesa: se eu ficar “bonzinho”, ninguém vai me bater; se eu conseguir crescer pessoalmente e profissionalmente, sem ficar “visível”, ninguém vai me maltratar.

Caso você faça parte desse time, que na hora de fazer um filme, sempre ou quase sempre quer ser o “mocinho”, tome cuidado. A vida prega peças. Ser “vilão”, algumas vezes, é uma fonte de aprendizagem e amadurecimento emocional.

Sugiro um exercício para você analisar se tem assumido mais o papel de mocinho, de vilão ou se está equilibrado e harmônico em seus processos interrelacionais. 
1- Faça uma lista com três itens que deixam você desconfortável quando tem que abrir mão do que pensa ou sente, para evitar conflitos. Um exemplo: quando uma pessoa do seu convívio tem comportamentos inadequados (fumar em casa ou falar muitos palavrões).
2- Identifique quando você aceita esses desconfortos, sem se impor, para não ficar no lugar do vilão.
3- Com base nesse diagnóstico, dê um título para o filme da sua vida, qual o papel que gostaria de representar, qual seria o enredo e personagens que desejaria envolver no enredo de sua vida.

Mocinho o vilão são duas facetas de uma mesma moeda. A troca de papéis é regulada pelo carinho e o amor daqueles que amamos. Boa sorte. Boa “filmagem”.

Sebastião Souza